quarta-feira

Dança para Deficientes Visuais

DEFICIENTES VISUAIS E INCLUSÃO SOCIAL
Ótimo conteúdo para analizarmos como a dança faz bem.







DANÇA ALÉM DA VISÃO: POSSIBILIDADES DO CORPO CEGO
Clotildes Maria de Jesus Oliveira Cazé
Adriana da Silva Oliveira

RESUMO
O artigo suscita reflexões sobre as possibilidades do corpo cego e a interação com a dança na construção da autonomia. Autores como Fleming, Frazão e Lusseyran apontam questões sobre a rede tecida pelos sentidos na formação de imagens sensório-motoras pelo deficiente visual. Damásio contribui para o entendimento de emoção e razão. Llinás explica a construção do movimento baseado na Neurociência. Katz traz a Teoria do Corpomídia para pensar a dança como cognição. Nas considerações finais, observamos a dança como parte do conhecimento humano e espaço que possibilita o entrelaçamento de saberes, haja vista o ser humano se construir em rede pelo imbricamento entre corpo, ambiente e cultura.
PALAVRAS-CHAVE: deficiência visual – movimento – corpo – dança – autonomia
Além desse ver eu preciso enxergar, mas para enxergar eu preciso do olhar dos meus olhos? [...] Se elaboro bem as minhas sensações e emoções corporais, não preciso só dos meus olhos, mas do meu corpo para olhar, ver e enxergar. (SANTOS, 1996, p. 78).
INTRODUÇÃO
Habitamos em um mundo predominantemente visual. Imagine a importância da visão para o ser vivo que necessita perceber o mundo a fim de interagir com ele e poder se mover. Como se deslocar em segurança por este lugar “estranho”, “inóspito”, “perigoso”, sendo este ser desprovido da principal fonte de percepção humana: a visão? Ser cego é ter a percepção de um mundo borrado, sem contornos nítidos, sem definições. É não poder contar com o recurso da visão para conhecer o mundo no qual se vive. Os olhos são tão importantes para os seres humanos que ao se referir a algo que tem a nossa atenção e cuidado, costuma-se dizer que é a nossa “menina dos olhos”.
E por que existem seres humanos cegos? Alguns com cegueira total e outros com cegueira parcial. Qual o motivo desta diferença? Onde encontrar as explicações para estes fatos? Estas pessoas não são boas o suficiente e receberam um castigo “divino”? Ou é um ser estranho que vem de fora e arranca os olhos e a capacidade de visão dessas pessoas como no conto – “O estranho” – relatado por Freud (1976, p. 289), no qual “O Homem de Areia é um ser perverso que chega quando as crianças não vão para a cama e joga punhados de areia nos olhos delas, de modo que estes saltam sangrando da cabeça”.
Que ser estranho é este que tem a possibilidade de provocar deficiências, de interferir nas ações dos seres humanos, tornando-os reféns das circunstâncias? É possível, por analogia, compreender este ser estranho, o “Homem de Areia” que arranca os olhos das crianças, como os acidentes e as enfermidades tipo diabetes – que podem ocorrer e provocar cegueira, interferindo na qualidade de vida desses indivíduos.
Existem dois tipos de cegueira: congênita e adquirida. O primeiro tipo se refere às pessoas que já nascem sem o recurso da visão; elas não possuem imagens pré-formadas, inclusive a imagem corporal de si mesmo. O segundo tipo se refere às pessoas que perderam a visão em algum momento da vida por causas diversas; possuem imagens mentais anterior à deficiência. Além disso, a cegueira pode ser total ou parcial; na cegueira parcial, o indivíduo apresenta visão subnormal.
Provavelmente, de todas as deficiências que afetam os seres humanos, a que mais priva o indivíduo do contato com o mundo externo é a deficiência visual, visto que o olho é o maior captador de imagens sensório-motoras. Os “olhos roubados” impossibilitam que esses indivíduos possam perceber e compreender o mundo no qual estão inseridos. Eles necessitam de artefatos que ampliem as suas possibilidades de entender o mundo. Mas, esta deficiência não é algo que veio de fora, de um mundo fantástico, etéreo, como no conto de Freud (1976, p. 288), um mundo “povoado de espíritos, demônios e fantasmas”.
Essa deficiência pode estar na formação do ser, nas explicações biológicas, nas doenças adquiridas ou nos acidentes que podem acontecer ao longo da vida; daí Freud (1976, p. 289) afirmar que “o medo de ferir ou perder os olhos é um dos mais terríveis temores das crianças. Muitos adultos conservam uma apreensão nesse aspecto e nenhum outro dano físico é mais temido por esses adultos do que um ferimento nos olhos”. Freud (1976) assegura que a ansiedade quanto aos próprios olhos e o medo de ficar cego se relacionam ao temor de ser castrado.
O corpo cego, assim como qualquer outro corpo, possui uma história pessoal. Ele é constituído de movimento, pensamento, emoção, razão, sentimentos e sonhos, muitos sonhos. As vias de acesso a estas informações é que são outras, pois eles não utilizam a visão. Damásio (1996) afirma que sentimentos e emoções são percepções diretas de nossos estados corporais e constituem um elo essencial entre o corpo e a consciência, estando relacionadas com o processo de tomada de decisão.
O movimento é a nossa primeira forma de linguagem: uma linguagem não verbal estruturada no corpo. Partindo desta idéia, o corpo é a condição primeira para que ocorra o pensamento a partir da articulação entre a coerência e a coesão das ações sensório-motoras.
O corpo testa hipóteses de movimentos e seleciona os mais eficientes. Pelo processo de memória e repetição promove a aprendizagem desses movimentos em uma negociação com o ambiente, organizando a informação em tempo real. Ocorre um mapeamento temporal, a informação que chega ao cérebro se reconfigura a todo o momento pelo acesso às novas informações, facilitando a configuração rápida de imagens. A imagem sensório-motora, segundo Llinás (2002), necessita de uma pré-alimentação e uma retro-alimentação da informação.
A limitação do indivíduo cego está relacionada à percepção visual; entretanto suas outras fontes de percepção estão intactas e possibilitam a aprendizagem. Aqui a regra válida é que cada indivíduo tenha a possibilidade de explorar o ambiente, buscando novas formas de interação, ampliando suas capacidades multissensoriais para uma aprendizagem significativa, reorganizando os conhecimentos pela interação dos sentidos não comprometidos.
O desenvolvimento da competência sensório-motora ocorre ao longo da vida, não se restringe apenas ao período da infância (LAKOFF; JOHNSON, 1999; LLINÁS, 2002). Este fato reforça a importância da prática da dança mesmo na vida adulta. Para os indivíduos cegos, esta prática torna-se ainda mais relevante pelas interações espaço/temporais e corporais com os processos mentais. Os processos de assimilação, organização, reorganização e acomodação das experiências vividas pelos indivíduos cegos ocorrem de forma mais lenta do que nos indivíduos normovisuais1, entretanto, eles acontecem.
Frazão (1968) afirma que a audição e o tato possuem grande importância nas elaborações mentais do indivíduo cego. Também o aparato proprioceptivo é requisitado para o controle postural e a manutenção do equilíbrio. Sobre esta questão, é necessário compreender que:
Postural stability is essential in the everyday activities involved in leading an independent lifestyle. […] The ability to modulate posture and voluntary movement serves to enhance the acquisition of environmental information, not only from visual mechanisms but also from somatosensory and vestibular mechanisms2 (WADE; JONES, 1997, p. 620-621).
A dança apresenta esta possibilidade, pois além de trabalhar aspectos que envolvem a construção do pensamento, a criatividade e as idéias de tempo-espaço, melhora a manutenção do equilíbrio e da postura corporal. É necessário entender que as capacidades e habilidades do indivíduo cego não estão limitadas; a organização perceptiva é que se processa de maneira diferente devido à ausência da visão.
Praticar dança permite ao indivíduo cego construir suas próprias idéias de tempo /espaço, de manutenção do equilíbrio pela reorganização postural, a partir da utilização dos outros sentidos, do aparato vestibular e da propriocepção. O indivíduo estabelece seu ritmo próprio de aprendizagem através da experimentação, do contato corporal, do toque, da exploração do espaço e dos sons. Os conhecimentos produzidos nestas experimentações são levados para as atividades da vida diária.
A dança, para o deficiente visual, possibilita a superação de limites impostos pela cegueira, ampliando as possibilidades motoras com a execução de movimentos conscientes. Ela promove a melhoria do equilíbrio e da locomoção; da socialização, da realização pessoal e propicia uma vida ativa; além disso, a dança aumenta a compreensão da noção espaço/temporal e a noção de consciência corporal pela concretização da imagem de si mesmo, podendo ser um espaço de descobertas e consolidação de novos padrões motores que possibilitam novas aprendizagens e a aquisição da autonomia.
A aquisição do movimento em dança pelo indivíduo cego depende das condições oferecidas pelo meio e pelo grau de apropriação que o corpo fizer destas ações pela percepção, estabelecendo relações entre as sensações e os movimentos elaborados. Isso possibilita ao indivíduo prever mentalmente atos motores cada vez mais complexos, sendo o corpo co-participativo na construção desse conhecimento.
Piaget (1964) defende a idéia de que o conhecimento é fruto de construções sucessivas com elaborações constantes de novas estruturas. Este pensamento nos remete a Katz (2005) quando a autora afirma que a cada vez que realiza um mesmo movimento, o mapa neuronal já não é o mesmo, pois este acontece no tempo/espaço do acontecimento real. Sendo assim, quando o indivíduo se depara com novas situações, seja ele cego ou não, utiliza esquemas de ações sensório-motoras disponíveis para a percepção, construção e assimilação do movimento no momento em que o mesmo acontece.
Lakoff e Johnson (1999) ratificam este pensamento quando afirmam que todas as informações que chegam ao corpo via percepção são sensório-motoras. Ocorre uma formação de redes neuronais, um criterioso trabalho de seleção de informação em rede pela capacidade de neuroplasticidade3 do cérebro.
O indivíduo não armazena as informações, seja em um corpo cego ou não; elas são refeitas a cada momento sempre que necessárias, apoiando-se no real, nas conexões entre o mundo externo e o aparato cerebral. Desse modo a aprendizagem é construída no fazer concreto, na manipulação, na locomoção, representando internamente a realidade (LLINÁS, 2002).
O indivíduo cego não tem a possibilidade de receber as informações do mundo externo através da visão. De que forma então pode ser percebida a informação dança pelo deficiente visual? Este corpo cego percebe a dança da mesma forma que os indivíduos normovisuais percebem?
Nesta perspectiva, a motivação é um fator intrínseco relevante no processo ensino-aprendizagem da dança, pois mobiliza e impulsiona o indivíduo, predispondo-o a agir para alcançar os seus objetivos e a buscar soluções para resolver os problemas. A motivação aliada à curiosidade são as molas propulsoras na descoberta das possibilidades do corpo. Utilizando a percepção e a reflexão, ocorre a assimilação dos movimentos da dança pela representação construída mentalmente, permitindo ao cego, como lembra Lusseyran (1995, p. 44), “mergulhar numa vida que é tão real e difícil quanto às outras vidas”, mas que vale a pena ser vivida.
De acordo com Fleming (1978, p. 109): “a criança cega terá dificuldade com tarefas cognitivas e perceptivas caso não obtenha uma vasta gama de experiências e oportunidades de explorar seu ambiente”. A dança possibilita esta exploração e o aumento deste repertório de experiências e oportunidades pela utilização do sistema somatossensorial, aguçando os sentidos tátil, auditivo e cinestésico.
Quanto maior for o tempo de exploração do movimento individual ou na relação com o outro, maior será a compreensão e a assimilação deste movimento, facilitando o entendimento do tempo/espaço, das noções de lateralidade, da aquisição do equilíbrio e do controle postural, além da melhoria da mobilidade. Refina também a idéia de corpo nas inter-relações com os outros e com o ambiente.
Golomer et al. (1999) e Vuillerme et al. (2001a apud NAGY et al., 2004) afirmam que: “It has been observed that professional dancers and gymnasts are significantly more stable and less dependent our visual for postural control that untrained subjects4. Se este fato é observado nos indivíduos normovisuais que praticam dança, apresentando resultados significativos; por analogia, é possível compreender que para o indivíduo cego a prática da dança possibilita esta estabilidade no controle postural, melhorando a sua mobilidade e conseqüente autonomia.
Nowill (1996) garante que o maior desejo do indivíduo cego é poder participar da vida em sociedade. Para que isto ocorra é necessário promover ações que possibilitem a sua autonomia. Ele necessita pegar, manipular e sentir, a fim de perceber a realidade concreta. Para facilitar este processo é necessária a interação dos sentidos, facilitando a percepção e conseqüente aprendizagem.
Muitas são as tentativas de melhorar a qualidade de vida das pessoas portadoras de deficiências. Estas ações permitem a participação destes corpos na sociedade, possibilitando uma interação entre os sujeitos e se não for possível a superação, pode auxiliar na convivência com a deficiência, buscando promover a autonomia desses indivíduos. Os deficientes não necessitam da compaixão dos não-deficientes; eles necessitam de espaço na sociedade da qual fazem parte. Não se trata aqui de assistencialismo e sim de oportunidades para que eles exerçam o seu papel de cidadão. Este fato inclui a possibilidade de participar de atividades que, a princípio, parecem impróprias para o deficiente. A dança é um exemplo.
A compreensão deste fato permite que esses indivíduos sejam inseridos no campo artístico, cultural, educacional, político e social pelo acesso à prática destas atividades individualmente ou em grupos. Entretanto, muitas são as dificuldades encontradas por estes corpos deficientes: profissionais despreparados, espaços inadequados e falta de oportunidade são alguns exemplos. No caso do deficiente visual, as dificuldades aumentam sobremaneira pela impossibilidade de utilizarem a capacidade antecipatória do cérebro de prever situações e saber solucioná-las adequadamente. Isto se dá pela ausência da visão que é a responsável pela pré–alimentação das respostas motoras (LLINÁS, 2002).
Bobath (1978) ratifica esta idéia ao afirmar que o sentido da visão dá acesso às informações do mundo externo, sendo o principal sentido utilizado na formação de imagens sensório-motoras. A partir destes dados indagamos: É possível o corpo cego se apropriar da informação dança? Como este fato se processa?

DANÇAR SEM OLHOS
Sabemos que a aquisição e construção dos movimentos acontecem a partir da percepção sensorial, sendo o sistema visual o principal responsável por este fato. Que recursos os deficientes visuais utilizam para elaborar os movimentos e transformá-los em dança sem ter o referencial do mundo externo? Como esta experiência se dá sem a presença de movimentos visualizados para serem entendidos?
Para entender esta experiência é preciso pensar a dança no momento em que ela acontece, pois Llinás (2002) assegura que o pensamento é a interiorização evolutiva do movimento. Para Katz (2005), a dança é uma forma de pensamento. Sendo a dança movimento, estas idéias se complementam.
A dança nasce quando no corpo se desenha um determinado tipo de circuitação neuronial/muscular. Este mapa, exclusivamente ele, tem o caráter de um pensamento. Quando ele se dá a ver no corpo, o corpo dança. Esse momento parece inaugural. No entanto, o apresentar-se da dança no corpo já representa o fim de um caminho. Quando lá se instala, a dança inaugura uma outra cadeia de circuitação para o corpo. Os acionamentos que impelem esse trânsito têm o mesmo caráter daquele que ocorre no cérebro humano (KATZ, 2005, p. 52).
Para compreender a dança, os indivíduos cegos necessitam vivenciar experiências corporais que possibilitem o contato com o mundo e com os outros. Llinás (2002) afirma que “mirar é uma forma sutil de tocar”; observando esta idéia é possível pensar que na ausência da visão “tocar é uma forma diferente de ver”; isto é, utilizar a audição para “sentir” o ritmo e o tato para “perceber” o movimento e a relação com o corpo.
Os seres humanos são modulados pelos sentidos para se relacionar com o mundo a sua volta. A visão é a principal via de recepção das imagens que possibilitam a nossa compreensão de mundo; os deficientes visuais não possuem esta via. Para compreender o que é um mundo sem imagens, podemos fechar os olhos e imaginar, tentar nos locomover em um espaço desconhecido sem o uso de artefatos que ampliem a nossa possibilidade de visão. Ainda assim somos privilegiados, pois já conhecemos o mundo externo e temos a idéia destes fatos que podem ser recuperados pela evocação das memórias já experenciadas.
A bengala de Hoover5 é um artefato que “expande a visão” do deficiente visual, aumentando a distância entre este e os objetos que o cercam, proporcionando-lhe uma maior autonomia. Merleau-Ponty (1994, p. 198) explica que “a bengala para o cego não é um simples objeto, sua extremidade é uma zona sensível que aumenta a amplitude e o raio de ação de tocar, semelhante a um olhar”. Ela é um instrumento de orientação e promove a autonomia do indivíduo cego, funcionando como uma extensão do próprio corpo. Esta idéia nos reporta a pensamentos já cultivados no Renascimento:
[...] vê tudo em relação e procura(r) correspondência entre corpo, natureza e instrumentos. São metáforas que se enviam reciprocamente pelos parâmetros comuns percebidos nessas três instâncias. Por isso, seu mecanicismo é metafórico e procura sempre associar máquinas a modelos, figuras, organismos e necessidades práticas humanas. Ele vê os instrumentos como extensão das capacidades do organismo humano de pôr-se em relação com o mundo e utilizá-lo (BRANDÃO, 2004, p. 278).
Ainda Brandão (2004, p. 279) lembra que “para Alberti, a máquina é produto da história humana e metáfora que multiplica as possibilidades de todo nosso ser. [...] Alberti humaniza a máquina e a coloca em função dos fins humanos”.
A dança para o deficiente visual deve ser uma experiência na qual ocorra uma interação e um compartilhamento de informações em nível de pele pelo toque, pelo sentir das características de outros corpos. É possível afirmar que são corpos que se comunicam. Hellen Keller, cega e surda desde bebê, reforça a necessidade do toque das mãos para o desenvolvimento da percepção de mundo do indivíduo cego:
Não posso desfrutar da beleza do movimento rítmico senão numa esfera restrita ao toque de minhas mãos. Só posso imaginar vagamente a graça de uma bailarina, como Pavlova, embora conheça algo do prazer do ritmo, pois muitas vezes sinto o compasso da música vibrando através do piso. Imagino que o movimento cadenciado seja um dos espetáculos mais agradáveis do mundo. (HELLEN KELLER6).
Possibilitar aos deficientes visuais o contato com a dança é uma forma de ajudá-los a sentir, perceber, conhecer e aprender. Além disso, vivenciando a dança, esses indivíduos têm a possibilidade de utilizar suas capacidades, descobrir suas habilidades e explorar suas potencialidades, aumentando a sua autonomia.
Dançar é movimentar-se. No caso do indivíduo cego é “ver” com o corpo o que os olhos não podem enxergar; é ultrapassar limites impostos pela deficiência visual. É aprender a partir da experiência em tempo real, sendo a imagem sensório-motora uma realidade produzida pela interação das percepções no aparato cerebral. A formação da imagem corporal no indivíduo cego depende de informações táteis, auditivas e cinestésicas já que as experiências visuais são limitadas, dificultando-lhe a percepção do mundo.
A imagem corporal e a relação desta com o espaço circundante elaborada pelo corpo cego, possivelmente, apresentam fronteiras borradas por o indivíduo não ter a percepção visual dos objetos e do seu próprio corpo. O contato com o outro nas aulas de dança facilita este processo, uma vez que o leva a perceber o movimento que o outro realiza, permitindo reconhecer o movimento do próprio corpo e expor idéias corporalmente, se apropriando de parâmetros sensório-motores relacionados à marcha, ao equilíbrio, à força, à flexibilidade e ao tônus muscular.
O deficiente visual constrói o seu universo a partir do toque e os seus movimentos em dança serão construídos a partir do seu repertório de experiências. Poder movimentar-se sem o auxílio de outras pessoas é, para o deficiente visual, sinônimo de autonomia conquistada passo-a-passo em um processo contínuo de novas adaptações, promovendo novas aprendizagens. Desta forma, dançar não deve ser um ato mecânico destituído de significado para o corpo que dança. As atividades de dança para os deficientes visuais devem ser criativas, lúdicas, com movimentos que promovam a autonomia deste corpo.
A dança pode ser construída a partir dos movimentos cotidianos, das atividades da vida diária e da locomoção, promovendo autonomia. Com isso há um ganho na qualidade de vida, possibilitando a inserção sócio-cultural do indivíduo cego na comunidade como um cidadão ativo e capaz. Desse modo, a dança não deve estar presa a valores e modelos preestabelecidos e deve permitir que o indivíduo descubra nos movimentos o seu fazer com estilo e caráter próprio; fato que o individualiza. Além disso, ela deve ser desenvolvida juntamente com os indivíduos normovisuais promovendo assim a interação, pois, o movimento em dança também é coletivo.
Nesse sentido, a dança pode surgir a partir do jogo, da brincadeira, da atividade dirigida, da exploração de movimentos através do toque, da relação corpo-a-corpo, unindo emoção e razão. O indivíduo cego tem a possibilidade de explorar a sua criatividade e descobrir a sua potencialidade criadora, pois, como corrobora Llinás (2002; p. 198), “[...] a criatividade do cérebro humano, os processos neurais inerentes àquilo que chamamos de criatividade nada tem a ver com a racionalidade. [...]. A criatividade não nasce da razão”.
A dança, para o corpo cego, deve ser pensada como movimento, corpo em ação, e não como terapia; pois a habilidade motora, uma vez adquirida, se consolida e isto leva a autonomia, diminuindo a ação dos fatores limitantes impostos externamente ao corpo cego. Se a dança é o pensamento do corpo, como afirma Katz (2005), cabe-nos perguntar: – Qual a importância da dança na construção da autonomia do indivíduo cego? De que forma atua no desenvolvimento da percepção corporal deste corpo? Qual o significado da dança para estes corpos?
A dança para o deficiente visual pode significar a intermediação entre o seu corpo, o corpo do outro e o ambiente, permitindo-lhe ganhos na qualidade de vida como a melhoria da auto-estima, o equilíbrio, a manutenção postural e, principalmente, a autonomia. Neste processo, a dança deve ser valorizada porque através dela o indivíduo percebe o movimento em relação ao seu corpo e o corpo do outro; o seu espaço e o espaço do outro, e também a interação entre estes.
Acreditamos que a dança neste corpo privado de visão possibilita novas relações do sujeito que dança com o seu Umwelt7 e o ambiente. Santaella (2003, p. 184) lembra que “não vemos o mundo lá fora como algo separado de nós, mas vemos apenas aquilo que nossa organização sistêmica nos permite ver”. Partindo desta idéia é possível afirmar que o indivíduo cego ‘ver’ aquilo que a união dos outros sentidos permite captar do mundo externo.
Assim como Alberti, citado por Brandão (2004) também Santaella (2003) reforça a idéia de ampliação das possibilidades do corpo pela presença de artefatos e da união de eventos que constituem a nossa humanidade:
Em um mesmo corpo, reúnem-se o mecânico e o orgânico, a cultura e a natureza, o simulacro e o original, a ficção científica e a realidade social. A declaração de Haraway de que somos todos ciborgs deve ser tomada em sentido literal e metafórico. No sentido literal, porque as tecnologias biológicas e teleinformáticas estão, de fato, redesenhando nossos corpos. Metaforicamente, porque estamos passando de uma sociedade industrial orgânica para um sistema de informação polimorfo (SANTAELLA, 2003, p. 186).
O corpo do mundo contemporâneo tem sido redesenhado por tecnologias cada vez mais sofisticadas, tecendo uma rede complexa entre os eventos que constituem a nossa humanidade. Desta forma, corpos cegos que dançam também têm suas habilidades e competências redesenhadas pela possibilidade de utilização dessas novas tecnologias.
Nesta perspectiva, este corpo está sempre em um estado transitório de imagens e memórias experenciadas que se constituem no trânsito de informações entre corpo e ambiente, natureza e cultura. É um corpo ativo na ação cognitiva que está imbricado em um contexto cultural, social, imaginativo, desejante, passional e metafórico como esclarecem Lakoff e Johnson (1999). Desta forma, observando o pensamento de Freire (1996), os corpos cegos que dançam estabelecem no ato de aprender/fazer dança um ato político, criativo e transformador, pois se inscrevem em um ser/fazer/estar contínuo, incompleto, inacabado e metafórico; representativo da própria experiência humana em um diálogo presentificado na complexidade do existir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho deseja suscitar reflexões sobre as possibilidades do corpo cego e a sua interação com a dança em uma proposta de construção da autonomia, lembrando ser este sujeito constituído de sentimentos, sonhos, desejos, emoção e razão. Um sujeito biológico, cultural, histórico, social e político que possui a sua individualidade e é também um sujeito coletivo, construído em uma rede que deve possibilitar a sua inserção como cidadão; um ser capaz, livre de discriminação na sociedade a qual pertence.
Entender o espaço próprio da dança neste processo como uma busca pessoal de construção do movimento em tempo real, pois o conhecimento não acontece apenas pelo uso da razão e sim pela interação com a emoção, possibilita compreender a importância da dança na aquisição/construção do movimento no/pelo corpo cego. A dança como atividade possível de ser realizada pelo corpo cego deve se preocupar com o estudo do corpo e suas ações, compreendendo o corpo em sua relação com o ambiente; isto acontece no fazer.
Nesta perspectiva, preocupar-se com o estudo do corpo significa compreender o corpo que se move em um determinado espaço, a interação com o corpo do outro na construção da idéia de tempo/espaço, a relação com o ambiente na busca da autonomia do corpo cego, mas com possibilidades de descobertas.
Neste sentido, praticar dança é relevante e depende da integração dos sentidos, potencializando assim as capacidades e habilidades corporais. A descoberta e a exploração do movimento estão imbricadas e são co-dependentes, sendo parte da necessidade humana de sobrevivência do indivíduo e também da permanência da espécie na terra. Para o corpo cego, esta necessidade se faz maior.
Assim, este conhecimento em dança se constrói cotidianamente com base nas experiências individuais e na interação do sujeito com o outro e com o mundo, respeitando as limitações próprias. Quanto maior for o repertório de experiências do indivíduo, maiores serão as suas chances de aprendizagem. Esta é uma relação de grandeza diretamente proporcional e a dança propicia este espaço de aprendizagem e construção de autonomia.
Nesta perspectiva, é necessário perceber a importância da dança como atividade compartilhada que proporciona percepção do mundo, do outro e de si mesmo ao indivíduo cego. Este pode utilizar o contato físico, o fluir do movimento independente de estímulos externos, para compreender as mensagens enviadas pelo próprio corpo para a construção do movimento consciente a partir de tomadas de decisão que lhe permite a escolha de respostas, possibilitando um refinamento dos esquemas sensório-motores.
O mundo do indivíduo cego não precisa ser restrito e sem possibilidades; mesmo tendo limitação sensorial, são pessoas com capacidades e limitações como as outras e podem usufruir da dança – uma ação corporal que ocorre em tempo real possível a qualquer ser humano. Não podemos esquecer que o deficiente visual é um ser humano constituído de corpo, história, emoção, razão, sentimento, pensamento e sonhos; como tal tem o direito de usufruir dos conhecimentos humanos. A dança é uma dessas formas de conhecimento.
NOTAS
*Mestra em Dança pelo PPGDança da Escola de Dança da UFBA (2008), Especialista em Ginástica Rítmica pela UNOPAR (2003) e em Psicopedagogia pelo CEP/MEx/UFRJ (1998). Graduada em Educação Física pela UCSal (1982).
**Graduada em Fisioterapia pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (2004) e mestranda em Dança pelo PPGDança da Escola de Dança da UFBA (2008).
1 Normovisuais: pessoas com visão dentro do padrão de normalidade.
2 Tradução das Autoras: Estabilidade postural é essencial nas atividades diárias envolvidas em guiar um estilo de vida independente. […] A habilidade para modular a postura e os movimentos voluntários serve para intensificar a aquisição da informação ambiental, não somente a partir de mecanismos visuais, mas também a partir dos mecanismos somatossensórios e vestibular.
3 Neuroplasticidade do cérebro: capacidade de adaptabilidade a novas situações.
4 Tradução das Autoras: Tem sido observado que dançarinos profissionais e ginastas são significativamente mais estáveis e menos dependentes da visão para o controle postural que sujeitos não treinados.
5 O Primeiro Tenente Oftalmologista Richard Hoover, após a segunda Guerra Mundial, se propôs a estudar e tratar o problema da cegueira e o mecanismo da marcha e criou um método revolucionário de locomoção, usando um instrumento que lembrava um bastão, mas com função, material e comprimento diferentes. Este instrumento recebeu o nome de Bengala de Hoover. Disponível em: http://intervox.nce.ufrj.br/amigosbr/historia.html. Acesso em: 15 dez. 2006.
6 Três dias para ver – Ensaio escrito por Hellen Keller e publicado na revista Seleções Reader’s Digest há 70 anos. Reeditado em Seleções Reader’s Digest em junho de 2002. Disponível em: http://www.cerebromente.org.br/n16/curiosidades/helen.htm. Acesso em: 15 nov. 2006.
7 Umwelt: “Universo particular” ou “privado”, proposto por Uexkull (1992) apud Vieira (2006). Percepção de um Universo que não é real, mas o que é permitido pela complexidade, produzido na interação com a realidade.





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